Wednesday, February 16, 2011

OS BRASILEIROS


A os historiadores sempre causou espanto a monolítica unidade territorial política e cultural do Brasil, sobretudo quando comparada à fragmentada América espanhola. Mas aproximando-se para observar através das lentes da realidade, começa-se a perceber que este pretenso monolitismo é vário, muito mais rico em aspecto contrastante do que sempre pretenderam os mais simplistas.

O Brasil é, antes de tudo, muitos países: o Brasil do sul, europeizado e gauchesco, o Brasil do nordeste, verdadeiro laboratório etnológico, onde se misturam sem qualquer constrangimento, as três raças que compuseram o painel humano do país. Existe ainda o Brasil amazônico, no qual convivem índios ainda próximos da cultura neolítica, ocultos pela floresta, e técnicos altamente capacitados produzindo sofisticados equipamentos eletrônicos na zona franca de Manaus. Há o país das Minas Gerais, de velhas cidades adormecidas no tempo, em cujas ruas pedregosas ainda ecoam passos de inconfidentes e poetas e de cidades modernas e vibrantes.

E existe o país de São Paulo, múltiplo mesmo em comparação à multiplicidade do país como um todo.

O São Paulo dos imigrantes italianos, dos japoneses e dos nordestinos, é um país dentro do país.

Ao mesmo tempo e com a placidez dos santuários, existe o Brasil do Pantanal, imensidão de águas e terras habitadas pelo especialíssimo caboclo pantaneiro.

Com tudo isso, afinal quem somos nós, os brasileiros?

Somos, em primeiro lugar, índios: tupis, jês, aruaques, divididos em muitas famílias, cada qual com sua própria língua, espalhados por todos os brasis.

E somos também portugueses. E com esta ascendência, somos celtas, iberos, árabes e capsienses. Descendentes do herói pastor Viriato que enfrentou os romanos e de anônimos mouros que invadiram terras portuguesas. E somos godos e visigodos. Tanto quanto judeus, sírios e armenoídes, pois a despeito de suas reduzidas dimensões, Portugal recebeu contingente humano das mais variadas procedências.

Evidentemente, somos também negros. Somos nagôs, ijechás, eubas e ketus, povos vindos da Nigéria e do Sudão. Descendentes de páules, fulas e mandingas, haussas e muitas outras culturas negras islamizadas, conhecidas durante a escravidão, sob a denominação de malês. Deles herdamos, além dos traços, importantes contribuições à cultura nacional. É deles, por exemplo, a criação do traje típico das baianas, com suas rendas, suas saias engomadas, os muitos colares e braceletes, tão ao gosto árabe. Tivemos avós e amas-de-leite iorubanas e bantas.

Dessas três raças básicas, formadoras de nossa personalidade, de nossa aparência e de nossa cultura, surgiu uma miríade de subtipos, provocados pela constante, aberta e prazerosa miscigenação que nossos ancestrais praticavam. Por isso, somos mulatos, mamelucos – filhos dos ardentes amores de capitães-do-mato e das índias que preavam e emprenhavam, cafuzos ou curimbocas – rebentos dos encantos de duas raças oprimidas, o negro escravo e o índio dizimado.

De chapéu de couro e alpercatas, com traços duros, como se entalhados na madeira por uma lâmina, somos o cabra nordestino, frutos dos arroubos apaixonados entre negros e mulatos. Às vezes um cristalino par de olhos azuis, faiscando na face crispada de um cabra, revela, com mais eloqüência do que qualquer compêndio de história, a importância da presença do invasor holandês no nordeste, avós das multidões de Wanderleys que enfrentam a dureza da seca que cantam e dançam quando a chuva cai.

Somos franceses e como não? O somos em São Luis do Maranhão como o fomos na côrte. E somos ainda em criança, quando cantamos o marré-de-ci, ou dançamos quadrilhas marcadas em francês, mesmo que algo estropiado pela língua do povo, (língua errada do povo / língua certa do povo), como dizia o poeta Manuel Bandeira. Blancê e anavantu, ordens comuns dos mestres quadrilheiros, nada mais são que balancês, usuais nas alegres festas de Versalhes.

No sul, somos alemães e poloneses. Como italianos, fabricamos vinho de boa qualidade. Se no nordeste nossas cidades têm nomes de sabor tropical, como por exemplo Catolé do Rocha ou Maranguape, revelando o traço firme, pintado no vermelho vivo de urucum dos índios, no sul Chamam-se germanicamente Blumenau e Pomerode.

Mas não ficamos aí: em um único Estado temos uma tropicalíssima Rio de Janeiro e uma européia Nova Friburgo.

E como repercutiu em nossa criatividade o impacto de mistura de tantas raças e culturas? Sem dúvida enriqueceu-nos. Transformou-nos em um gênio da pintura ingênua, como o negro Heitor dos Prazeres, bom de samba e de pincéis, ao mesmo tempo em que nos fez um Portinari, descendente de italianos, nascido em Brodosqui, a despeito do no nome de som eslavo, cidade tão brasileira como Matão e Palmeira dos Índios. Quando escrevemos temos a elegância, o talento e a dignidade de Machado de Assis, soba da intelectualidade e descendente de pretos africanos.

Nossa poesia também é negra retinta, com Cruz de Sousa, indelevelmente européia com Olavo Bilac, parda e cabra nos repentes e martelos dos cantadores nordestinos, ou universal, pairando acima das raças e cores, quando somos poetas como Carlos Drumonnd de Andrade.

Ao escrevermos romances, somos algumas vezes, uma complexa mistura de árabes e mulatos, principalmente quando descrevemos a civilização do cacau, os mistérios e seduções da Bahia e nos assinamos Jorge Amado.

Quando compomos música, então somos uma multidão. Somos a um só tempo, clássicos e populares, abertos aos avanços da arte, da regência e aos ecos de dolentes bandolins e violões das rodas de chôro, se nos assinamos Villa Lobos.

Tornamo-nos maestros imbatíveis do contraponto, enlouquecendo regentes famosos que vêm estudar nossa música, quando sentamos em uma cadeira de balanço, à sombra de uma frondosa mangueira que ameniza o calor estival de um subúrbio carioca, transplantamos nossa alma para uma flauta e um saxofone como fazia Pixinguinha.

Podemos ser alvos filhos de Xangô como Vinicius de Morais, poeta de alturas camonianas e letrista de samba de terreiro, ao mesmo tempo em que, pardos, cantamos místicas incelências aos santos católicos.

Somos uma grande diversidade. Aqui nascemos nas matas e nas praias, onde aprendemos a falar a língua geral e a cultura Maíra. Para aqui viemos em grandes caravelas, impropriamente vestidos para o clima tropical e ávido de riquezas fáceis. Também por mar, em infectos porões, fomos trazidos da África para encontrar os tesouros que fizeram a fortuna dos senhores. Ainda por mar, chegamos assustados, sem entender a língua e ofuscados pelo sol brilhante, encantados com a paisagem, carregando poucos pertences e muitas esperanças.

Somos Ubirajaras louros e Williams pretos. Somos o orgulhoso cacique Rauni e o humilde anônimo guarani, de calça, camiseta e sandália de borracha, vendendo no Viaduto do Chá, artefatos indígenas fabricados na periferia de São Paulo. Somos muitos. E mais que muitos tantos.

Somos , acima de tudo,

BRASILEIROS.

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